Em Josué e hoje, Mulheres no volante da luta pela terra. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Mulheres indígenas ocuparam Brasília em defesa dos seus direitos, dia 15/08/2019. Foto: Tiago Miotto/CimiEm setembro de 2022, Mês da Bíblia, o tema bíblico sobre o qual a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) convida todas as pessoas e comunidades cristãs a refletir será o livro de Josué. No sexto e último pequeno texto com chaves de leitura para se ler e interpretar de forma justa e libertadora o livro de Josué apresentamos as Mulheres no volante da luta pela terra.
Na época do pós-exílio, quando o livro de Josué já estava
pronto, com as três edições, as mulheres, autoras dos livros de Rute e Cântico
dos Cânticos (em + ou – 400 a.E.C.), podem ter inserido, nos primeiros
capítulos do livro, escritos na época do rei Josias (640 a 609 a.E.C.), os
relatos sobre Raab (Js 2; 6,17.22). Em Js 2, portanto, temos a saga de Raab, em
que o clã de uma mulher marginalizada por sua condição social se alia aos
hebreus para derrubar a classe dominante da cidade de Jericó e construir uma
sociedade alternativa justa e democrática com acesso de todos/as à terra (Js
6,17.22-25). A saga de Raab aglutina
inúmeras experiências de grupos cananeus submetidos a relações sociais
escravocratas (hapirus) que se
integram no povo liberto por Javé da escravidão sob o imperialismo dos faraós
no Egito.
No
capítulo II do livro de Josué: Raab é duplamente oprimida, por ser mulher e por
ter sido empurrada para a prostituição, isto é, prostituída. Em Canaã, a
cidade-estado Jericó precisa de Raab, mas como objeto de prazer, coisificada,
violada na sua dignidade humana. Raab representa os explorados da
cidade-estado, diríamos hoje, das cidades-mercado. Ela se alia aos camponeses
expropriados e transformados em sem-terra, porque está indignada com a opressão
que se abate sobre si mesma e sobre seu clã. Raab vê no movimento dos rebeldes
que marcharam “40 anos pelo deserto” em busca da terra prometida uma
alternativa para a construção de relações sociais justas que iria resultar em
libertação para ela e para os superexplorados da cidade. Raab descobre que não
pode continuar submissa à opressão da cidade e nem ficar neutra diante do
iminente embate entre o status quo da
cidade opressora e os revoltosos vindos das montanhas e do deserto.
Pressupondo
que o capítulo I de Josué também tenha sido acrescentado posteriormente, tem-se
hoje a verdadeira porta de entrada do livro de Josué, na primeira versão, em Js
2, com a emblemática narrativa popular, em forma de saga, sobre Raab, que
acolhe e protege os espiões da luta pela terra, com muita astúcia, adere à fé
em Javé e ao final, é preservada, ela e todo o seu clã. Essa narração, logo no
início do livro de Josué pode indicar que de fato a luta pela terra, ao se
tornar exitosa não tenha implicado na eliminação de “todos os habitantes”, mas
apenas deposto a classe dominante do poderio escravocrata que exercia sobre os
grupos marginalizados nas periferias da cidade e nas regiões rurais
montanhosas. Js 2, por ser do gênero literário saga indica que a
narrativa de Raab representa as experiências congêneres de vários grupos: os escravizados
sob o imperialismo dos faraós no Egito, os camponeses empobrecidos e
seminômades surrados pelas Cidades-Estados sob o arbítrio dos reis cananeus e
grupos urbanos explorados, representados por Raab. Javé liberta todos estes
grupos subalternizados e agora irmanados para conviverem de forma fraterna e
respeitosa.
As narrativas sobre Raab, a estrangeira prostituída
(Js 2,1-21; 6,17.22-25), propõem a superação de um “povo de Deus” etnocêntrico
e a abertura a “povos de Deus” irmanados na luta pela terra e pela sua partilha
para ser espaço de vida em usufruto e jamais como mercadoria passível de ser
vendida ou comprada.
O
livro de Josué nos informa que várias outras mulheres conspiravam, irmanadas na
luta pela terra, assim como Raab. São elas: Acsa, filha de Caleb, que
reivindica terra com poços/fontes de água (Js 15,16-19; Jz 1,12-15; 1Cr 2,49),
Maala, Noa, Hegla, Melca e Tersa, filhas de Salfaad, que reivindicam o direito
das mulheres à terra como herança (Js 17,3-6; Nm 26,33; 27,1-11; 36). A luta
pela terra, tanto na Bíblia como nos tempos atuais, demonstra que o
protagonismo das mulheres tem sido imprescindível nas lutas pela libertação da
terra das garras do latifúndio, tendo, inclusive, muitas delas sido
martirizadas por este compromisso, como, por exemplo, Margarida Alves e a Irmã
Dorothy Stang.
Dia
13 de agosto último (2022), tive a alegria de visitar uma camponesa exemplar na
luta pela terra e na terra: Santana, companheira de João, assentada no
Assentamento Paulo Freire, no município de Arinos, no noroeste de Minas Gerais.
Santana e João nasceram na roça no distrito de Serra das Araras, atualmente
município de Chapada Gaúcha, MG. Como jovens foram forçados a migrar para
Brasília, onde João se tornou pedreiro, e Santana, doméstica e depois diarista.
Após mais de dez anos de labuta na capital do Brasil como doméstica e diarista,
Santana, já com três filhos pequenos, vendo e sentindo as agruras de mães da
periferia que não conseguiam salvar seus filhos adolescentes diante das
seduções do submundo das drogas e da falta de oportunidades para educar os
filhos com dignidade, ela pensou consigo mesma e disse ao João: “O melhor lugar para criar nossos filhos é na
roça, no campo, não é aqui na cidade. Quero entrar na luta pela terra junto com
os sem-terra do MST[2].” João não se opôs. Com
dois filhos pequenos, Santana acampou debaixo do barraco de lona preta em um
acampamento no município de Uruana de Minas, vizinho do município de Arinos, no
noroeste de MG. Após três anos de muita luta, Santana conseguiu ser assentada
no Assentamento Elias Alves, em Uruana de Minas, mas em um lote que não tinha
água. Depois, Santana e João conseguiram se transferir para um lote que nenhuma
família estava aceitando no Assentamento Paulo Freire, no município de Arinos.
Trocaram um lote que não tinha água por um lote que em parte do ano fica
alagado pelas enchentes do rio Urucuia que represa o rio Claro. De 2012 pra cá,
Santana e João se tornaram um ótimo exemplo de reforma agrária. Toda
quarta-feira e aos domingos, Santana, em uma motocicleta, leva cerca de 110
quilos de feijão, abóbora, ovos, queijo etc para vender na feira dos Pequenos
Agricultores na cidade de Arinos. João diz feliz da vida: “Uma família assentada como a nossa alimenta cinco famílias lá na
cidade. E mais: gera saúde também para o povo lá da cidade, pois nossa
plantação aqui é toda agroecológica.”
Enfim,
a luta pela partilha da mãe terra em usufruto passou por Raab e por muitas
mulheres da Bíblia e da história da humanidade e hoje passa por Santana e João.
Assista abaixo videorreportagem que gravei com Santana e João.
17/8/2022
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto
tratado, acima.
1 – Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra -
Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG
2 - Bíblia, Palavra que Ilumina e Liberta. Dia da Bíblia,
30/9/21. Por Frei Gilvander, Irmã Ivanês etc
3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa
terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 - Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e
Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters
5 - Frei Carlos Mesters entrevistado por frei Gilvander:
Inspirações da Bíblia para sermos humanos
6 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei
Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro
7 - Formação
para o Mês da Bíblia 2022 - O livro de Josué. Por Francisco Orofino
8 - Ótimo
exemplo de Reforma Agrária: P.A Paulo Freire, em Arinos/MG, Santana:
"melhor lugar!" Vídeo 1
9 - Santana,
mulher exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos/MG! Que exemplo de luta pela
Reforma Agrária
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br
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