Pedro e Paulo, apóstolos dos gentios? E nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]
Celebraremos os 50 anos do mês da
Bíblia, em setembro de 2021, refletindo sobre e a partir da Carta do apóstolo
Paulo aos Gálatas, escrita em meados da década de 50 do 1º século da era cristã.
Paulo e Pedro aparentam ser bem diferentes conforme o narrado no livro de Atos
dos Apóstolos e nas Cartas Paulinas. Por que e para que os apóstolos Pedro e
Paulo parecem ser diferentes segundo Atos dos Apóstolos e as Cartas Paulinas? Escrevendo
uns 30 anos após a Carta aos Gálatas, o autor de Atos dos Apóstolos, na década
de 80 do Século I, sob o impacto dramático dos cristãos e cristãs sendo
expulsos/as das sinagogas, busca promover unidade entre cristãos e judeus e,
acima de tudo, busca justificar que os cristãos não eram sectários e nem
separatistas. Enfatizar as diferenças seria alimentar quem defendia rupturas
internas nas primeiras comunidades cristãs. Cultivar a unidade em uma imensa
diversidade era imprescindível, pois a divisão interna enfraqueceria as
comunidades. Nesta toada, em Atos dos Apóstolos, Pedro é paulinizado e Paulo é
petrinizado, ou seja, o autor de Atos dos Apóstolos credita a Pedro Atos que
historicamente devem ter acontecido primeiro na atuação missionária de Paulo,
como os Atos de Pedro narrados no capítulo 10 de Atos dos Apóstolos: Pedro sai
de Jerusalém, a igreja mãe, vai para o meio dos impuros gentios, na casa (oikia, em grego) de outro Simão, um
curtidor de couro, Simão se torna Pedro, ao fazer a experiência de Deus na vida
concreta dos empobrecidos, segundo a qual Deus não discrimina ninguém. Pedro
defende as propostas de Paulo no Concílio de Jerusalém (Cf. At 15,7-12) e
advoga, em consonância com os apóstolos Paulo e Barnabé, a superação da
circuncisão, a maior barreira e fardo pesadíssimo que os “falsos irmãos”
insistiam em impor também sobre as comunidades da Galácia, de Antioquia etc.. O
autor de Atos dos Apóstolos mostra o apóstolo Pedro como um grande missionário
“percorrendo todos os lugares” (At 9,32)
– Lida, Jope, Cesareia etc. – e chega a caracterizar Pedro como “apóstolos dos gentios” (At 15,7). Porém,
historicamente, bem antes de Pedro, Paulo deve ter sido o “apóstolo dos gentios” (Gl 1,16), dos de fora, dos considerados
bárbaros e impuros.
Para superarmos contradições aparentes
existentes entre Atos dos Apóstolos e as Cartas Paulinas é sensato seguir o
princípio segundo o qual as Cartas Paulinas têm mais consistência histórica do
que Atos dos Apóstolos, pois foram escritas uns 30 anos antes de Atos e também
por serem cartas. Atos dos Apóstolos é acima de tudo Teologia da História e
jamais história das primeiras comunidades cristãs. Podemos atribuir algum valor
histórico a informações que estão em Atos dos Apóstolos apenas em casos sobre
os quais não há nenhuma informação em nenhuma carta paulina. Assim, por
exemplo, as restrições apresentadas em Atos dos Apóstolos, após a abolição da
circuncisão, não devem ter sido dos anos 49/50 do século I quando deve ter
acontecida uma reunião entre os apóstolos Paulo, Barnabé, Pedro, Tiago e João,
em Jerusalém, segundo Gálatas 2,1-10, reunião que o autor de Atos dos
Apóstolos, 30 anos depois, narra como tendo sido uma Assembleia ampliada.
Segundo o autor de Atos dos Apóstolos, nesta Assembleia ampliada a circuncisão
foi abolida, com algumas condições: “abster-se
de carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das uniões
ilegítimas” (At 15,29). Estas restrições devem ser dos anos 80 e impostas
por Tiago, o irmão de Jesus e líder da Igreja mãe, em Jerusalém, na época.
Sobre a Assembleia acontecida em Jerusalém, em Gálatas, Paulo, faz questão de
enfatizar que Pedro, João e Tiago “pediram
apenas que nos lembrássemos dos pobres, e isso eu tenho procurado fazer com
muito cuidado” (Gl 2,10). “Lembrar dos pobres” é fazer Opção pelos Pobres,
é conviver com os injustiçados/as, ouvir atentamente seus clamores, abraçar
suas causas e COM os pobres se comprometer em lutas pelos seus direitos. Não
basta ajudar os pobres, trabalhar para eles ou por eles. Os pobres devem ser
reconhecidos como sujeitos e protagonistas de suas lutas. Nas lutas libertárias
dos pobres, às vezes, é preciso estarmos à frente apontando o rumo da
caminhada, mas, muitas vezes, é preciso estarmos no meio dos pobres sentindo o cheiro
do povo, compreendendo suas dores e seus saberes e, outras vezes, é preciso
andarmos atrás dos pobres na luta pelos seus direitos, amparando os mais
enfraquecidos, os que vão mais devagar.
Não se sustenta a interpretação bíblica com ranço
dualista, segundo a qual Lucas, em Atos dos Apóstolos, faz uma Teologia da
Glória e Paulo, em suas cartas, faz Teologia da Cruz, abrindo brecha para se
concluir que Lucas negava o Cristo crucificado e Paulo negava o Cristo
ressuscitado. Em um olhar mais atento, observamos que Lucas, em Atos dos
Apóstolos, não nega a cruz: “depois da
sua paixão” (At 1,3), enfatiza o sofrimento de Jesus e as aparições de modo
convincente (Lc 24,38-43). No Evangelho de Lucas, o Cristo ressuscitado não
aparece vindo da Glória, mas de baixo para cima: “Porventura não convinha que o Cristo padecesse estas coisas e entrasse
na sua glória?” (Lc
24,26). Logo, dizer que em Atos dos Apóstolos está uma Teologia da Glória em
contraposição a uma Teologia da Cruz (das cartas paulinas) não condiz com a
teologia lucana. Atos dos Apóstolos afirma uma Teologia da Glória, do Jesus
Cristo ressuscitado, tendo como base a Teologia da Cruz. Lucas não nega a cruz
e enfatiza que a ressurreição brota a partir do assumir radicalmente o projeto
de Deus, o que implica passar pelo martírio sofrido por Jesus Cristo e por
muitos/as outros/as discípulos/as de Deus e de Cristo. Por outro lado, não
condiz com a Teologia Paulina dizer que Paulo faz uma Teologia da Cruz
ignorando uma Teologia da Glória. Paulo enfatiza o cristo crucificado, mas em
momento algum nega a fé em Jesus Cristo ressuscitado. A diferença é só de
ênfase requerida pelos contextos diferentes em que atuavam o apóstolo Paulo e,
uns 30 anos depois, o autor de Atos dos Apóstolos. E, recordemos, os dois –
Pedro e Paulo – se assemelharam tanto a Jesus Cristo que, como ele, terminaram
martirizados, segundo a tradição da igreja. Agora a missão está em nossas mãos.
Que honremos o legado espiritual, ético e profético de Pedro e Paulo, duas
colunas mestras das comunidades cristãs.
20/07/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram
o assunto tratado acima.
1 - CARTA AOS GÁLATAS - BLOCO 1
2 - CARTA AOS GÁLATAS - BLOCO 3
3 - Senhora de Guadalupe, rogai por nós! Reflexão.
Gálatas 4,4-7 e Lucas 1,39-47. Manoel Godoy –12/12/20
4 - Live de lançamento do livro: “Carta aos Gálatas:
até que Cristo se forme em nós” (Gl 4,19).
5
- Canto da Carta aos Gálatas (Paródia) - Mês da Bíblia/2021 (setembro) -
CEBI-MG - 11/7/2021
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof.
de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte,
MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com
– www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
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